A mulher siro-fenícia, a misericórdia de Deus é sem fronteiras

 No tempo de Jesus, havia muitas barreiras que separavam as pessoas. As leis da pureza determinavam quem estava mais próximo de Deus e quem estava mais distante. Uma pessoa impura era eliminada do convívio social e novamente admitida mediante rituais de purificação. Havia impurezas transitórias e permanentes – por exemplo, o estrangeiro era considerado impuro por sua própria "condição geográfica".


Embora não faça parte da nossa cultura o sistema do puro e do impuro, ainda há muitas barreiras e preconceitos que separam e dividem as pessoas nos diversos ambientes sociais.


Um dos desafios mencionados por Marcos era a necessidade de superar as divisões existentes entre judeus e gentios. Em diversos relatos, vemos Jesus superando esses obstáculos: é criticado por comer com publicanos e pecadores (Mc 1.15-17).


Este artigo nos ajudará a caminhar com Jesus. Com Ele, queremos ultrapassar as fronteiras da Galileia em direção à região de Tiro e de Sídon. 


1. Da Galileia para Tiro

“Saindo dali, foi para o território de Tiro” (Mc 7,24). Jesus sai da alta Galileia, região acidentada e montanhosa, uma paisagem muito diferente da baixa Galileia e da região do Vale, marcada por suaves colinas e planícies. Por causa das altas montanhas, o acesso às diferentes localidades é mais difícil, dificultando a comunicação entre as aldeias e os povoados da alta Galileia. Nessa região, o processo de urbanização durante o período romano foi menor. Era uma população tradicional e fechada às diferentes culturas e etnias.


Acompanhando os passos de Jesus, vemos que ele se desloca da alta Galileia para a região de Tiro. Causa espanto o fato de um judeu galileu sair para a terra dos gentios. Segundo o relato de Marcos, essa viagem de Jesus acontece depois de longa discussão com os fariseus e alguns escribas vindos de Jerusalém. Entre os judeus galileus e os habitantes de Tiro, chamados simplesmente de “siro-fenícios”, havia divisões religiosas, políticas, sociais e econômicas. Entre esses dois grupos, havia uma hostilidade recíproca.


Na memória do povo judeu há algumas lembranças ruins de Tiro. Dessa região, temos a rainha Jezabel (fenícia). Essa mulher oficializou o culto a Baal em Israel, no século IX a.C. (cf. 1Rs 16,31-32). Os profetas denunciaram o luxo e a opressão provocados por Tiro (Ez 26,15-21; Zc 9,3). Jezabel era filha do rei dos Sidônios Etbaal (1 Reis 16:31 diz que ela era "Sidoniana", que é um termo bíblico para os fenícios em geral). Durante a revolta dos macabeus, Tiro, Ptolemaida e Sídon lutaram contra os judeus, defendendo os imperadores selêucidas (cf. 1Mc 5,15). No tempo da dominação romana, Sidônia, a cidade da Fenícia, era o principal porto da região na viagem a Roma, trazendo o produto comercial, o exército e a cultura helenizada de Roma, opressora dos judeus, para a Palestina.


Os fenícios sempre exploraram os galileus no mundo do comércio. A Galileia era terra fértil e a produção de grãos, vinho, óleo e carne era abundante. Além da riqueza agrícola e da pesca, existia na região um centro de produção de cerâmica em Kfar Hananiah e Shikin, situadas entre a alta e a baixa Galileia. A região de Jericó oferecia extraordinárias tamareiras, plantas de precioso bálsamo, e também era conhecida como a cidade das palmeiras (cf. Dt 34,3; Jz 1,16). Uma parte dessas riquezas era levada para Tiro e Sidônia, cidades portuárias da Fenícia, passando pela alta Galileia. Na transação comercial, os fenícios sempre levaram vantagem, aumentando o conflito com os judeus galileus.


No campo religioso, as cidades helenizadas da Fenícia, província da Síria, representavam, para os judeus do tempo de Jesus e das primeiras comunidades cristãs, a expressão máxima do culto a deuses pagãos. Na região citada por de Marcos, situada na alta Galileia ou no sul da Síria, havia a presença mista de judeus e de gentios, a qual constituía um dos conflitos da comunidade. O conflito se agravou com a chegada à alta Galileia dos judeus refugiados de Jerusalém por causa da Guerra Judaica. Eles, incluindo os escribas, consideravam os gentios como impuros e condenados por Deus.


Diante desse conflito, o evangelho de Marcos descreve o encontro de Jesus com a mulher siro-fenícia e sua filha possuída por demônio. 


2. Todos têm direito de participar da mesa do reino! (Mc 7,24-30)

A visita de Jesus à região de Tiro e o seu encontro com uma mulher siro-fenícia causaram espanto e entraram em contradição com a concepção messiânica da época, segundo a qual a salvação seria somente do povo de Israel. Mas esse encontro ampliou o conceito de Messias em vários sentidos: geográfico, étnico e espiritual. De acordo com a narrativa de Marcos, é possível entender que Jesus se retirou da Galileia para escapar do tormento dos fariseus ou para fugir de Herodes, que governava a Galileia e a Pereia e há pouco tirara a vida de João Batista (cf. Mc 6,16).


Em território estrangeiro, Jesus entrou numa casa e quis permanecer oculto. Que casa seria essa? Podia ser uma casa de judeus que habitavam a região de Tiro. A intenção de Jesus era descansar, mas isso não foi possível, pois uma mulher ficou sabendo de sua presença ali e invadiu a casa, atirando-se a seus pés. Esse gesto era típico de quem prestava uma homenagem ou pedia um favor. Em sua necessidade, a mulher buscou uma solução para o seu problema (da sua filha) e não teve medo de romper barreiras.


Como mãe, a mulher suplicou a Jesus a cura da filha, que tinha “um espírito imundo”. Ela estava disposta a tudo para alcancar o seu propósito. O relato apresenta o proble da filha de duas maneiras diferentes: Mc 7,25 afirma que ela tem um espírito imundo, e Mc 7,26.29.30, um demônio. A primeira expressão é comum no mundo judaico, e a segunda é usada em outras culturas. Isso pode indicar que as pessoas a quem o Evangelho de Marcos se dirige são formadas por judeus e estrangeiros. De um lado, temos a insistência da mulher, de outro, a aparente "indiferença" de Jesus, cuja resposta à mulher nos deixa intrigados: “Deixa que primeiro os filhos se saciem, porque não é bom tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos” (Mc 7,27).


Diante do pedido da mulher, a resposta de Jesus reflete a mentalidade judaica do seu tempo. Esse pensamento acredita que os filhos de Israel têm prioridade sobre os gentios. O termo “filhos” era aplicado ao povo de Israel, e o termo “cachorro ou cães”, mesmo usado no diminutivo, era um insulto contra os gentios, pois os cães eram associados com a impureza (cf. Ex 22,30; 1Rs 21,23; 22,38; 2Rs 9,36). Esse termo também era usado para designar um povo sem valor e desprezível (cf. 1Sm 24,15; 2Sm 16,9; Is 56,10).


Jesus se refere a Israel com o termo grego "teknon", crianças ou filhos legítimos (biológicos), ao passo que a mulher emprega o termo "paidion" no grego, cujo sentido pode ser servo em uma casa. É termo mais abrangente. A mudança de termo pode significar que, para a mulher, a misericórdia de Deus vai além de Israel. É sem fronteiras.


De maneira sábia e audaciosa, a mulher se utiliza da mesma comparação de Jesus, apresentando o seu argumento: “É verdade, Senhor; mas também os cachorrinhos comem, debaixo da mesa, as migalhas dos filhos!” (Mc 7,28). A mulher devia conhecer a fama de Jesus, pois ela se dirige a ele usando o título “Senhor”. Ela representa uma parte do povo que reconhece Jesus como o Senhor.


A mulher compreende e aceita a primazia de Israel melhor do que os judeus. A sua determinação e a sua coragem dão testemunho de sua esperança. Ela reivindica os direitos dos gentios. Jesus percebe a sinceridade e a humildade no argumento da mulher e diz: “Por essa palavra, vai; o demônio já saiu de tua filha" (Mc 7,29). 


Jesus ultrapassa as barreiras étnicas, geográficas e políticas e ver a realidade das pessoas que sofrem. Em Cristo, a salvação não é apenas para os que guardam a Lei e a tradição, mas está aberta a todas as pessoas que creem nele!

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